Sun Wei nasceu em 1973, e seu conto “A ilusionista” foi finalizado em 2019. Ela é membra de diversos projetos literários na Inglaterra, Suécia, Suíça, Irlanda, Dinamarca, Nova Zelândia, Alemanha, Hungria, Letônia, Romênia, Estados Unidos, entre outros países, assim como vencedora de muitos prêmios literários. Atualmente é estudante de Doutorado em Literatura e Literatura Comparada na Universidade do Sarre, na Alemanha, onde faz parte do grupo de pesquisa “Sonho Cultural Europeu”.
Já publicou 26 livros, incluindo romances e coletâneas. Suas obras receberam o Prêmio “Silver Ink” de Literatura Internacional da Letônia, bem como diversos prêmios nacionais. Foi traduzida para o inglês, alemão, espanhol, búlgaro, húngaro, entre outras línguas, e publicada na Europa e Estados Unidos. Sete de suas obras receberam contratos para adaptações de TV e cinema em nível nacional e internacional.
Sun Wei é conhecida como uma das mais importantes representantes da escrita literária urbana da China. Suas palavras sempre vão diretamente ao coração dos seus leitores — os ideais na escuridão da noite, os pecados às claras do dia, o brilho tímido da natureza humana.
A ilusionista
Sun Wei
Tradutor: Rud Eric Paixão
Até hoje, ainda me lembro claramente. Ela adorava o cheiro de velas se apagando, sempre brigava para apagá-las na minha frente e, na escuridão que chegava de repente, inspirava bem fundo. Naquele momento em que a chama fraca persistia no pavio, um fio de fumaça escura se enlaçava ao nosso redor, durando apenas alguns segundos.
Um cheiro misturado de âmbar, tinta de fuligem de pinheiro e chocolate guardados no fundo da gaveta — é o que ela me dizia.
Xiaomian era uma garota excêntrica, não entendo por que gostava de estar com ela. Nunca consegui sentir o cheiro de que ela falava. Na hora em que a vela apagava, por mais que me esforçasse para inspirar, só o que entrava no meu nariz era um cheiro de queimado meio irritante, que sumia rapidamente; não era muito desagradável, mas também não tinha absolutamente nenhuma relação com qualquer âmbar ou bastão de tinta guardado em uma mesa quadrada para oito.
Lembrando agora, a razão para eu ficar com ela talvez fosse desanimadoramente simples. Eu era só um moleque qualquer, e ela era uma garota linda. Linda a ponto de fazer estranhos não conseguirem tirar os olhos dela por alguns segundos após vê-la. A expressão nos seus olhos era repleta de um brilho encantador, frequentemente trazendo certa ingenuidade e timidez, como se não tivesse nenhuma noção da própria beleza.
Nossos pais costumavam brincar dizendo: “Já que o Li Rui gosta tanto da Xiaomian, então vamos acertar o casamento deles já na infância”.
Eu cresci com a Xiaomian em Shanghai, em uma casa de estilo shikumen. Minha família morava no salão do andar térreo; a família dela, no andar de cima. Naquela época, nossos pais trabalhavam em construções, ela e eu passávamos a maior parte do tempo juntos, sentados entediados no salão e virados para um pequeno espaço no pátio. Esse tipo de casa tinha muros muito altos, era como estar recebendo luz no fundo de um poço. A luz solar era pouca, mas a chuva era abundante; assim que ouvia o som da chuva, aqui se tornava um mundo secreto.
Naquele tempo, uma televisão era tão pesada quanto um cofre pequeno, sua tela não era tão grande quanto um notebook de 13 polegadas, e era em preto e branco. Foi a primeira vez que vimos uma apresentação do ilusionista estadunidense David Copperfield. As luzes sobre o palco eram ofuscantes; o som, talvez por interferência na recepção da antena, tinha muito chiado. O ilusionista vestia uma casaca e trazia no rosto um sorriso de orelha a orelha enquanto serrava ao meio sua assistente dentro da caixa, jogava cartas de baralho para o alto e sempre conseguia pegar a de número maior. A Xiaomian inclinava a cabeça, apertava os lábios e seus dedos finos mexiam nas pedrinhas yuhua sobre a mesa. Era óbvio que só não mudava de canal porque eu estava muito interessado.
A música ficou mais lenta. O ilusionista pegou um lenço branco e o balançou levemente; de dentro dele, saiu voando uma pomba de brancura imaculada. De repente, a Xiaomian endireitou a cabeça e abriu bem os olhos, soltando um suspiro de admiração. O ilusionista, então, ergueu sua varinha e a apontou para a floresta do quadro a óleo sobre a parede do palco. Sempre que balançava sua varinha, mais pombas brancas saíam voando. Essas coisinhas mágicas brancas voaram por um tempo sobre o palco e desapareceram por trás da tela da TV. Os olhos de Xiaomian não se moviam. Quando o programa terminou, desliguei a TV; ela continuou sentada em frente à mesa com o queixo sobre as mãos.
Quando fui me levantar, ela puxou a manga da minha blusa: “Li Rui, eu também consigo”.
Juntou suas mãos brancas e delicadas, como se estivesse segurando a chama de uma vela, e baixou os cílios, sua expressão um pouco tensa. Em seguida, abriu as mãos. Nesse momento, ouvi um barulho baixo e estranho, o som de asas batendo muito rápido. Uma pomba de brancura impecável saiu voando da palma das suas mãos, pousou sobre a ponta da mesa quadrada e sacudiu sua pequena cabeça branca avaliando perplexa o lugar em que se encontrava; em seguida, levantou voo, deu duas voltas no grande e espaçoso salão e, após encontrar a direção do céu, partiu sobre o muro alto do pequeno pátio, voando para aquele céu estreito.
Eu fiquei atônito. Aquela pomba surgiu do nada, simplesmente apareceu da palma das mãos da Xiaomian como se aquilo fosse absolutamente normal. Um sorriso brotou no rosto dela, sorriso este que iluminou todo aquele cômodo escuro. Ela estendeu as mãos e disse: “Consigo fazer de novo”. Segurei rapidamente suas mãos, dessa vez com bastante força, e as prendi sobre a mesa, fazendo um som abafado. Ela soltou um gemido de dor.
Não sei como explicar o pânico que senti naquela hora. Sugeri a ela que não tentasse mais fazer aquilo e disse para convencê-la: “Que tal se eu te der uma vela?”. Naquela época, todas as famílias tinham velas. Usavam quando acabava a luz, usavam apenas quando acabava a luz.
Em meio ao fraco brilho da luz da vela, Xiaomian sorriu novamente. Em um piscar de olhos, crescemos juntos e passamos na mesma universidade de Economia e Finanças para fazer graduação em Economia. Isso foi escolha dos nossos pais, que achavam que esse seria o campo com mais perspectiva de futuro aqui na cidade de Shanghai, além de prestígio, estabilidade e retorno financeiro. Os fatos provaram que o julgamento deles foi perspicaz. Muitos anos depois, Shanghai construiu uma avenida das finanças, uma “cidade dentro da outra”, semelhante ao que é a cidade de Londres dentro da Grande Londres, além de ter sido definida pelo governo como um centro financeiro internacional.
Contudo, depois do segundo ano na faculdade, a Xiaomian e eu abandonamos os estudos em segredo. Ela não gostava da maior parte das aulas, como finanças públicas, comércio exterior, investimentos imobiliários, economia monetária, macroeconomia, entre outras. Antes, eu nunca pensara se gostava ou não dessa profissão, da mesma forma que não havia pensado sobre o tipo de vida de que gostava quando estava com vinte anos, só considerava isso tudo como uma missão que tinha de terminar.
Ainda me lembro daqueles tempos cheios de magia, quando a Ericsson e a Nokia se popularizaram e se ouvia sem parar o som das conversas nas ruas. Era cena comum as pessoas conversando com alguém invisível, rindo ou chorando.
A Xiaomian cabulou o dia inteiro e à noite fomos jantar no refeitório. Ela me contou que fez uma “entrevista”, uma entrevista para ser ilusionista. O entrevistador ficou bastante satisfeito com ela, disse que poderia começar em três dias e talvez não demorasse a poder participar de uma apresentação. O rosto dela estava vermelho de excitação, mas temia que eu ficasse bravo. Provavelmente ainda se lembrava de quando, há muitos anos, machuquei sua mão ao apertá-la. Segurava um milho e dava pequenas mordidas enquanto me espiava timidamente por trás dos cílios.
Fiquei muito bravo, de verdade. Achei que o examinador tinha olhado apenas a sua aparência, que era um enganador que só queria tirar vantagem dela, é assim que as coisas são. Mas não tive coragem de destruir sua alegria, então propus acompanhá-la três dias depois, por segurança.
O examinador me olhou de canto: “Não acha que ela possui um talento raro?”. Essa fala fez com que eu corasse.
Esse examinador era um senhor de aparência gentil, que disse chamar-se Lu Feng, ou professor Lu; era muito magro, tinha cabelos e barba brancos, parecia muito preocupado e agia vagarosamente. Pegou um formulário de registro e disse para a Xiaomian preenchê-lo, avisando que na próxima semana iniciaria os ensaios e em um mês poderia participar de apresentações com o grupo de ilusionistas.
A primeira apresentação dela foi no Palácio Cultural do Trabalhador de Shanghai, um imóvel de esquina de luxo palaciano na parte antiga da cidade. Estava programada para ser a segunda, nem começando nem encerrando, na segunda parte. A reação do público não foi nada de mais; afinal, o número das pombas era algo tradicional.
Mas o professor Lu se importava muito, ficou o tempo todo observando de trás das cortinas dos bastidores. Eu também estava bastante agitado, era o “assistente” assim como o “agente” da Xiaomian, tinha de estar ao seu lado para protegê-la. Ainda que, na verdade, ela não precisasse de nenhum “assistente”, nem de alguém que atraísse a atenção do público para ela, ou que lidasse com os adereços no palco, ou de mesas e cadeiras, ou mesmo de cortinas. Ela usava um vestido branco simples, tinha presos seus cabelos pretos, não precisava nem mesmo de mangas longas. Tudo o que ela precisava fazer era juntar suas mãos, abri-las, e uma pomba branca como a neve surgia das suas palmas.
Determinando que ela apenas precisava fazer nove pombas aparecerem, o professor Lu ensinou o ritmo da apresentação a ela durante os ensaios. Primeiro soltaria uma pomba, depois mais uma, a seguir duas de uma vez, então mais uma e, por fim, três ao mesmo tempo; assim chegava ao ápice da apresentação e agradecia ao público enquanto as cortinas se fechavam.
Talvez a Xiaomian estivesse nervosa, pois sem perceber acabou fazendo mais que o necessário e, no total, trinta pombas surgiram, sendo que quatro saíram de suas palmas ao mesmo tempo na última vez. Essas coisinhas mágicas brancas circulavam sem parar dentro do teatro, sem conseguirem encontrar uma saída que levasse ao céu.
O professor Lu não fazia qualquer julgamento sobre as apresentações da Xiaomian, não elogiando nem criticando. Em silêncio, cuidadosa e diligentemente, preparava a apresentação seguinte para nós. Começamos a circular por todos os teatros de Shanghai e, dia após dia, as apresentações ficavam mais frequentes. Ele até mesmo organizou uma pequena apresentação individual para a Xiaomian. Dizem que essa é a maior honra para uma pessoa jovem que acabou de começar.
Lembrar as cenas daqueles dias faz com que eu me sinta no mundo dos sonhos. Naquela época, ela já era capaz de fazer aparecerem outros tipos de aves, pequenos pássaros das mais diversas cores que saíam sem parar de suas mãos e saltavam para o ar. Parecia que suas pequenas mãos pálidas continham a vida de todo um planeta. O azul era o martim-pescador, que pesca em meio aos riachos; o vermelho era o cardeal-do-norte; o verde era o periquito; o dourado era o papa-figos; o marrom era o cuco... Ainda tinha muitos outros de que não me lembro bem, e mesmo o nome desses eu apenas descobri aos poucos posteriormente.
Muitos anos depois, um jogo de celular chamado Angry Birds ficou popular entre os funcionários de escritórios de Shanghai; foi então que eu descobri o nome do cardeal-do-norte, mas nessa época já havia perdido o contato com ela.
Eu parava sobre o palco, no meio dos holofotes, olhando de perto, fixamente, enquanto pássaros de diversas cores saíam das mãos da Xiaomian. Eram como raios de sete cores, como fogos ao meio-dia; às vezes essa cena podia continuar por meia hora.
Aqueles pequenos pássaros chegavam jubilantes ao mundo. Naquele lugar não muito apropriado, sob aclamação, resmungos, gritos ou vaias dos espectadores, eram como um grupo de chamas acesas do nada, inexplicavelmente, trazendo consigo o ardor da vida, analisando perplexos o local em que se encontravam após o instante em que levantavam voo, buscando um lugar para pousar, carregando medo e frustração enquanto olhavam para todos os lados, procurando gentileza e amizade, buscando uma saída. Por um momento, o interior do teatro era como flores desabrochadas, com cores voando por todo lugar. Ao fim, os pássaros se reuniam voando em espiral sob o teto, como o redemoinho de um mar de flores.
Uma vez, quando voltei para trás do palco, vi o professor Lu parado ali, esfregando o canto do olho com o dedo. “Gelo seco. A fumaça entrou no meu olho”, disse rapidamente para mim. Mas não havia nenhum equipamento para fazer fumaça de gelo seco no palco, as apresentações da Xiaomian nunca precisaram disso.
Começamos a fazer “bicos itinerantes” por vários lugares e a ficar muito ocupados com as apresentações, mas o dinheiro era considerável e era frequente que o público estivesse cada vez mais amistoso, às vezes até mesmo em palcos montados em praça pública, a céu aberto. Embora a maioria dos artistas e ilusionistas não gostasse desse tipo de lugar para suas apresentações, Xiaomian adorava. Em um lugar assim, seus pássaros não precisariam ficar confinados com medo dentro do teatro; nascendo sob o céu, podiam partir voando diretamente para ele.
A fadiga das jornadas fez com que não tivéssemos mais como levar os estudos em consideração e não houve escolha senão abandonar a faculdade juntos em segredo. Naquela época, achava que isso não era nada de mais, pois o dinheiro que a Xiaomian conseguia com uma apresentação era no mínimo igual ao que a geração dos nossos pais ganhava em uma quinzena. Estava passando nos cinemas um filme de Hong Kong, bem popular, chamado Rajadas de Fogo. “Nós somos o maior casal de ladrões”, dizia a ela, sempre conseguia que risse dessa brincadeira.
No entanto, pouco tempo depois, começaram a chegar notícias ruins uma atrás da outra. Xiaomian estava recebendo reclamações vindas de outros ilusionistas. No começo, a Associação de Profissionais de Ilusionismo de Shanghai foi conversar com o professor Lu, o qual fez o possível para resolver tudo. Ouvi dizer que o vice-secretário da Associação não ficou satisfeito, reclamou demais e exigiu que Xiaomian se explicasse diretamente a eles.
De modo geral, o conteúdo das reclamações era o seguinte: em virtude da grande variedade de pássaros que ela fazia aparecer em cada apresentação, no caso de eles serem um adereço de palco regular, os assistentes de palco dos teatros teriam de pegá-los de volta e seriam usados novamente na apresentação seguinte do ilusionista, então os assistentes ficariam muito ocupados na recaptura desses muitos pássaros, não tendo gaiolas o bastante para eles, sem contar as despesas com alimentação.
Quanto a esse problema, na verdade, a Xiaomian sempre manteve sua oposição à captura dos pássaros pelos assistentes. Considerava que eles não haviam nascido presos, nem eram um adereço do palco; deviam abrir as janelas e deixá-los sair.
Ninguém disse nada, mas todos sabiam que a manutenção desses pássaros no teatro era exigência de outros ilusionistas; se os tivessem, também poderiam fazer o mesmo truque que a Xiaomian e o teatro receberia um valor considerável pelo seu aluguel como adereço de palco.
Todos os teatros têm diferentes ilusionistas apresentando a “profusão de aves”. Uma vez sugeri ao professor Lu que fosse negociar com eles; com uma expressão de escárnio no rosto, avaliou essas pessoas: “São só um bando de ‘ilusionistas’, qual a utilidade em discutir com eles?”.
No foco das reclamações havia ainda o método de apresentação da Xiaomian, pois muitos ilusionistas consideravam que ela havia violado princípios básicos do ilusionismo e seus adereços de palco. Ao fazer alguém aparecer, é preciso usar um guarda-roupas; ao fazer cartas de baralho surgirem, é preciso usar um lenço; ao fazer um peixe aparecer no aquário, é necessário usar uma mesa; até mesmo o David Copperfield, quando fez a Estátua da Liberdade desaparecer, precisou usar uma cortina. Como Xiaomian poderia desafiar toda a tradição e não usar nenhum adereço?
Essa reclamação assinada em conjunto ainda obteve os nomes de dezenas de ilusionistas importantes por todo o país. Pode-se dizer que tinha muito peso.
O professor Lu não sabia o que dizer a ela. Falou: “Eu estou nessa profissão quase toda a minha vida, mas não sei como descrever exatamente o que é o ilusionismo. Só o que eu sei é que toda apresentação de ilusionismo serve para que o ilusionista finja que chegou ao seu patamar, fazer algo surgir do nada. Claro que eles não têm essa capacidade nem a ambição e o interesse de se esforçar nesse sentido, a dificuldade é grande demais e o resultado é imprevisível. É por isso que utilizam adereços e colocam todo o seu esforço nesses truques. Até mesmo hoje em dia, o uso de adereços é a essência do ilusionismo. Talvez desse para dizer que o ilusionismo é o estudo dos adereços, não há quem possa dizer ao certo”.
A sugestão que o professor Lu deu à Xiaomian foi que, se desejava continuar a se apresentar nos palcos, teria de chegar a um acordo, usar adereços de palco como todos os outros ilusionistas, querendo ou não. Caso aceitasse, ele poderia fazer a mediação.
O resultado dessa mediação foi que a Associação de Profissionais de Ilusionismo de Shanghai convocou as autoridades locais do ramo para um pequeno simpósio, no qual formularam normas concisas e diretas quanto aos adereços de palco para apresentações com o número da “profusão de aves”.
Para suas apresentações, todos os ilusionistas teriam de usar uma caixa de palco com comprimento, altura e largura acima de trinta centímetros. Essa foi a síntese dos dados produzidos pelos votos nas ideias dos ilusionistas a respeito da apresentação do número da “profusão de aves”.
Xiaomian estava mexendo na caixa de palco que eu havia encomendado para ela: “E quem é que não consegue fazer pássaros saírem de uma caixa?”.
Essa caixa realmente era um pouco grande demais. Pude apenas consolá-la: “Alguém conseguir tirar cinco ou seis pássaros não tem mesmo nada fora do comum. Mas se você tirar algumas dezenas, os espectadores vão ficar pensando como tantos pássaros couberam dentro de uma caixa tão pequena, isso sim seria fora do comum”.
A partir de então, Xiaomian não precisaria mais usar suas mãos para fazer surgirem os pássaros, essa caixa bastaria para isso. Dentro dela havia camadas que levavam ao interior da mesa de palco; se quisesse fazer aparecer uma doninha, não seria nenhum problema.
Ela não queria, insistia em usar seu velho método. Explicou-me que, para ela, fazer os pássaros aparecerem era bem mais fácil que usar esses mecanismos dos aparatos de palco. Contudo, ela claramente parecia cada vez mais cansada, e os aplausos da plateia estavam ainda mais escassos. Ela ficou magra e pálida e estava sempre com alergias na pele.
Após o fim de uma apresentação, ela chorou: “Eu não engano ninguém, mas tenho que fingir estar enganando. É esse fingimento que eu não aguento mais”.
Eu não tinha o que responder. O professor Lu veio até nós e disse a ela em tom de reprovação: “Você só precisa ter uma coisa em mente. Sempre que você se apresenta, cria todos esses pássaros maravilhosos. Já eles, não importa quantas vezes se apresentem, ou quantos aplausos ou vendas de ingressos consigam, ou quão animada e espalhafatosa seja a apresentação deles em comparação com a sua, nunca vão conseguir trazer nenhum novo pássaro para este mundo; pelo contrário, com certeza vão machucar e matar vários, até que não sobre quase mais nenhum”.
Não importava quantas coisinhas mágicas voadoras a Xiaomian trazia para este mundo, o público era indiferente e diminuía dia após dia. Essa não era uma dificuldade apenas para ela, pois todo o ramo estava perdendo público; a programação da TV a cores era a própria mágica ao alcance das mãos, trazia tudo que os olhos precisavam.
Caso tivesse de ir até o local, o público precisava de uma experiência suficientemente estimulante. Os truques de escapologia passaram a ser a única programação que permaneceu: escapar de um tanque de água, de cordas em chamas, de um cenário pegando fogo, ou então pegar com as mãos a bala de uma arma pneumática, entre outros.
Os ilusionistas que recusaram esse tipo de número perderam rapidamente o seu público e desapareceram dos folhetos de programação, não conseguindo mais participar de apresentações.
No ano em que o professor Lu se aposentou, toda a indústria do ilusionismo estava em crise e muitas trupes teatrais partiram da cidade para o campo. Era nesses lugares em que a informação ainda não estava desenvolvida que as pessoas desejavam ver algumas apresentações. O professor dizia de si mesmo, rindo, que “escapou ileso”.
No dia da despedida, ele bebeu um pouco demais. Ergueu um copo para a Xiaomian e disse: “Eu te respeito, você não é uma ilusionista”. Aos ouvidos, isso parecia uma crítica, mas sua expressão e atitude eram claramente de admiração.
Pelo meu conhecimento, a Xiaomian não tinha realmente talento algum para o ilusionismo. Ela não era ágil e suas mãos se moviam com lentidão; os adereços de palco e os mecanismos pareciam ser seus inimigos naturais.
Ela não sabia como conquistar os favores do público, enquanto alguns ilusionistas, antes mesmo de começarem seus truques, frequentemente obtinham o riso e as palmas de toda a plateia.
O pior de tudo era que a Xiaomian se opunha às apresentações que não faziam nada surgir de verdade e o número da “profusão de aves” já não tinha espectadores, mas ela não tinha nenhum interesse em outros tipos de apresentações e cometia inúmeros erros. Houve uma vez em que acabei gritando com ela: “Todo mundo faz assim, o ilusionismo é isso!”.
“Li Rui, eu não sou boa nisso.” Ela se sentou sobre os degraus do cenário do palco e segurou a cabeça com as mãos; nas costas de suas mãos havia marcas avermelhadas de erupções alérgicas.
Naquele dia, a alergia dela estava bem séria. Deveria ter ido com ela ao hospital para tomar injeção de gluconato de cálcio, mas não tínhamos tempo; a agenda de apresentações estava muito apertada e no momento dava apenas para ela tomar dois comprimidos de clorfeniramina. Talvez por um dos efeitos colaterais do remédio ser o sono, as reações dela ficaram mais lentas; talvez por eu ter acendido um fogo muito forte, um galho em chamas quebrou sobre as suas costas.
Já não me lembro dos gritos confusos por todo o teatro, assim como do som de algumas palmas esparsas. Lembro apenas como a Xiaomian estava bela naquele dia.
Aquele era um truque de escapologia chamado “noiva banhada em chamas”. Seus cabelos negros estavam presos em um coque sobre a cabeça e ela usava um vestido imaculadamente branco. Parada sobre o palco, houve um instante em que surgiu um sorriso doce em seu rosto descontente, talvez porque tenha se distraído e se lembrado de alguma ave incomum.
Ela ficou internada por muito tempo após o acidente, uma cicatriz irremovível permaneceu em suas costas. Naturalmente, nossos pais ficaram sabendo de nosso segredo. Na verdade, foi porque os gastos da internação acabaram com nossas economias, e não tive escolha senão contar tudo para minha mãe e pedir dinheiro emprestado. Exatamente como eu esperava, ela contou sobre isso aos pais da Xiaomian. Ordenaram que nos separássemos e me levaram de volta para casa, sob vigilância dia e noite.
Muitos anos depois, lembrando-me de quando fui colocado sob custódia pela minha mãe, um tipo de tomada de consciência sóbria fez com que eu me levantasse da cama em meio a uma noite tranquila e não conseguisse voltar a dormir. Percebi que, quando fui procurar minha mãe por ajuda, já sabia o que ela faria. Naquela época, o que eu mais queria era me livrar do fardo que era a Xiaomian, então usei minha mãe para assumir essa culpa no meu lugar.
Minha mãe trabalhava com finanças em uma empresa estatal, dava muita importância à aparência e adorava saúde e bem-estar. Frequentemente buscava coisas da moda para poder se exibir nas conversas de escritório. Não tinha expectativas excessivas para a vida, e seu maior prazer era estar um pouquinho melhor que seus colegas de trabalho.
Uma vez, disse para mim durante o jantar: “Ano passado, encontrei uma mocinha com boa lábia e aparência bem na moda. No começo, pensei em apresentá-la a você, não imaginava que fosse uma mentirosa”.
Nos últimos dois anos, minha mãe tinha comprado sem parar os produtos de saúde de uma certa empresa grande que podia ser vista em todos os lugares, nos jornais e na TV; trocou os produtos importados pelas suas falsificações nacionais e passou a ser membra de um clube de vantagens.
Há não muito tempo atrás, foi revelado que os ingredientes dos produtos eram duvidosos, o principal sendo pigmentação de amido. Logo em seguida, o chefe da empresa saiu do país e desapareceu. O dinheiro colocado nos cartões dos membros não tinha utilidade, e os produtos que disseram que poderiam ser devolvidos caso não tivessem efeito não tinham como sê-lo.
Minha mãe foi atrás da gerente de relacionamento individual com os clientes. Era justamente aquela “mocinha”, a qual falou de modo convicto: “Senhora, é apenas um trabalho, sou assalariada. Nós servimos e apresentamos os produtos de acordo com as deliberações da empresa, não sei de mais nada. Já pedi minha demissão, estou trabalhando em um lugar novo. Se tiver alguma questão, deve procurar os funcionários atuais da empresa”.
Meu pai era professor. Sempre que minha mãe encontrava esse tipo de problema, usava com ela o tom de voz com o qual dava bronca em seus alunos de ensino médio, dizendo coisas como “Onde você estava com a cabeça?”, “Está colhendo o que semeou” e “Ir a uma farmácia honesta comprar pílulas de cálcio já não estava bom?”. Minha mãe, então, respondia: “A farmácia também vendia dessa marca, ok? É uma marca grande”, “Não dá para se prevenir contra tudo” e “Você tem sorte de isso nunca ter acontecido com você. Quando acontecer, vai continuar pretensioso assim?”.
Minha mãe continuava reclamando. A princípio, acreditou naquela “mocinha” e achou que era confiável quando apresentou os conjuntos de princípios científicos por trás dos efeitos do produto. Como podia tê-la traído? Deveria ir presa!
Então, meu pai foi até a cômoda para pegar o jornal e o abriu sobre a mesa. Disse apontando para ele: “Dá uma olhada, essa empresa tem dezenas de milhares de funcionários, são todos como a gente, trabalhando por um salário para poder viver. O mentiroso com certeza é o chefe. Se fizer como você disse, não vai ter cadeia para todo mundo”.
Eu não tinha o menor interesse na discussão deles, já ouvira os clientes no banco falando sobre isso o dia inteiro, meus ouvidos queriam entrar em greve. Até que minha mãe, sabe-se lá por quê, falou da Xiaomian.
Quando disse esse nome, “Xiaomian”, tremi violentamente por dentro; foi como se a magnífica paisagem de mansões e arranha-céus do lado de fora tivesse se partido e colapsado dentro de mim, tornando-se escombros estéreis do apocalipse.
“No ano passado, a Xiaomian veio me procurar um dia”, disse minha mãe. “Falou que esses produtos de saúde tinham problemas, mas não dei atenção a ela. Como fiz com que vocês se separassem, pensei que ela com certeza teria guardado rancor de mim. Achei que tivesse vindo causar problemas, ou então roubar os negócios de outra gerente. Não imaginava que ela realmente tinha boas intenções, eu a acusei injustamente.”
Já fazia vários anos. Depois que eu e a Xiaomian nos separamos, perdi qualquer vestígio dela.
Meus pais ficaram furiosos por eu ter abandonado os estudos sem permissão. Arranjaram aulas de reforço para mim e prestei o vestibular de novo. Assim que uma pessoa abandona o caminho regular estipulado pela sociedade, voltar é extremamente difícil, e a probabilidade é muito pequena. Felizmente, meu pai é professor de ensino médio; ele me deu aulas de reforço pessoalmente e conseguiu outros professores para me orientarem.
Depois de um ano e meio, voltei para a graduação em economia na mesma universidade, começando do princípio junto com as calouras e os calouros que entraram depois de mim.
Mas Xiaomian não pôde voltar. Ouvi dizer que precisou de muito tempo para se recuperar por completo, e que o pai dela usou das suas relações para conseguir para ela um emprego em uma grande empresa. Suponho que tenha sido naquela empresa de produtos de saúde.
Naquela época, a velha casa em estilo shikumen em que nossas famílias moraram juntas já havia sido demolida, nós todos nos mudamos para apartamentos, a distância era grande. Depois que isso aconteceu, os pais da Xiaomian se mudaram novamente com ela para outro lugar, e os meios de entrar em contato foram totalmente perdidos. “Que bom que foram embora, assim acaba com isso de vez. Ela não era alguém para se estar junto”, disse minha mãe naqueles tempos.
Depois de me formar, de acordo com o desejo dos meus pais, entrei em um grande banco. Meu emprego era monótono e eu trabalhava em uma escrivaninha. Talvez por eu ser um pouco mais velho que os recém-formados, os chefes apreciavam minha atitude mais “experiente” quanto à sociedade. Dois anos depois, fui transferido para o departamento de crédito. Esse era o posto lucrativo mais cobiçado por todos os departamentos do banco.
O sobrenome do diretor era Qiu, um jovem inexperiente, recém-formado, que passava o dia usando óculos da Rodenstock sem realmente precisar. Portava-se com elegância e falava em voz baixa, sendo bastante educado. Tratava-me com muita consideração por estar certo de que eu faria hora extra em feriados e também por não me importar em fazer muitos “trabalhos sujos” para ele.
Ele tinha um cofre extra, com dupla hipoteca de terras e títulos de propriedade, documentos de fiadores e contratos de “acordos de gaveta”, contratos públicos e secretos, e planilhas financeiras, todo tipo de papel capaz de gerar grandes quantias de fundos de crédito do nada. Isso sempre fez com que eu me lembrasse da caixa que mandei fazer para a Xiaomian — aquela caixa feita dentro dos padrões do regulamento da Associação de Profissionais de Ilusionismo.
Esse foi um período bom, todo dia havia pessoas me pedindo favores; frente aos outros aparentava sucesso, cheio de poder, riqueza e estabilidade.
Mas tudo o que é bom dura pouco. O diretor Qiu acabou sendo descoberto e eu fui envolvido, acabei passando um tempo “do lado de dentro”. Felizmente sempre fui bastante cuidadoso e nunca assinei nenhum documento importante, assim como nunca peguei nada em dinheiro vivo. Somando a isso a minha cooperação em fornecer testemunho, meu bom comportamento e o esforço dos meus pais, no fim fui solto sem nenhuma responsabilização criminal, mas seria difícil evitar que o banco pedisse que eu me demitisse.
O evento atingiu muitos outros departamentos, e vários colegas de trabalho do banco também se demitiram ao mesmo tempo que eu. Tendo compartilhado o infortúnio, planejamos começar um negócio juntos, uma companhia de alta tecnologia focada em manutenção de softwares de internet feita sob medida para bancos; o Xiong era do departamento de tecnologia de redes, então assumiu a liderança.
Esse tipo de trabalho geralmente é terceirizado, e os bancos certamente já contam com fornecedores fixos, mas nunca nos preocupamos com esse problema; carregamos conosco o segredo da demissão de muitas pessoas. Esse trabalho é o mínimo que poderiam nos dar.
Foi assim que continuei vivendo, meus dias sendo até mais tranquilos que antigamente, pois não precisava bater cartão e meu tempo era livre. Sabia muito bem como são as pessoas, era bom em lidar com elas, então me tornei vice-presidente da companhia; o Xiong, que dominava a tecnologia, naturalmente era o chefão.
Como o governo estava dando apoio ao pioneirismo dos jovens, recebi um convite para palestrar no Fórum da Cúpula de Jovens Empreendedores, minha foto estampando o panfleto.
Ao meio-dia, quando os convidados se sentaram juntos para comer na grande mesa circular, uma moça tomou a iniciativa de mudar de assento e se sentou ao meu lado, puxando conversa comigo animadamente: “Não acha que eu pareço familiar?”.
É um tipo de garota pelo qual sinto desgosto em especial, com esse jeito forte de vendedora, daquelas que ficam paradas na rua fazendo marketing, capazes de sorrir de rosto cheio para qualquer um e com uma autoconfiança animada por todo o corpo.
Mas realmente já nos havíamos visto antes. O nome dela era Liu Keke, antigamente escrevia artigos sobre finanças para uma coluna de jornal, indo frequentemente ao banco no qual eu trabalhava para pegar “mimos”, e depois foi para uma nova mídia de “pessoas idiotas e dinheiro fácil”. Ela agora se apresentava como a “diretora Liu” de alguma companhia de desenvolvimento da indústria de grupos culturais de TV e cinema, especializada em alguma coisa sobre IP.
Dei uma olhada rápida no dicionário, a definição de IP é: “do inglês, ‘internet protocol’, protocolo de comunicação de internet”. Pensei que ela tinha mudado de área, para tecnologia de internet, mas só depois descobri que se tratava de um novo termo inglês inventado na China nos últimos anos.
Trocando cumprimentos, eu disse: “Escrever aquela quantidade de coisas deve ser cansativo, não vale mais a pena ficar escrevendo para um monte de jornais?”.
Rindo de leve pelo nariz, ela falou: “E quem quer ganhar dinheiro com algo tão trabalhoso como programação? Já tem alguns Ips prontos, escritos há alguns anos. Pegamos sem nenhum custo, assinamos contrato de exclusividade perpétua e vendemos no mercado por alguns milhões. Depois enviamos dez ou vinte mil para o programador, que fica extremamente agradecido. Se não conseguirmos vender, azar o dele, fica sem nenhum tostão, escreveu à toa, mas não temos prejuízo”.
Parece que ela realmente encontrou um bom negócio, falava com conhecimento, sempre que abria a boca era como uma “estrategista”, uma pessoa “influente” e coisas assim.
Não imaginei que seria essa mulher que me levaria de volta para a Xiaomian. Dois anos depois, nossa empresa e a da Liu Keke trabalharam juntas em um filme chamado Ilusionista.
Naquela época, nossa pequena empresa de manutenção de softwares bancários tirou a sorte grande: completamos com sucesso três rodadas de financiamento e, logo depois, o terceiro financiador nos ajudou com o IPO e com a preparação para entrarmos no mercado de ações de Hong Kong.
O nome do nosso financiador era Zhang Quande. Tinha um forte sotaque de Shandong, era bastante corpulento e seu rosto era bem escuro; adorava se vestir bem e andava em um carro da marca Hongqi.
Ele era bastante generoso. Quando viu que as dimensões da nossa companhia não atendiam aos requisitos para entrada na bolsa, usou seu próprio capital de giro para nos ajudar a fazer grande volume de vendas e nos propôs diversificar nossas operações. Pouco depois, ainda colocou grande quantia de dinheiro na conta da nossa empresa e nos incumbiu de gravar um filme. Não importava sobre o quê, queria apenas que fosse rápido, para dar tempo de agregar valor ao IPO.
O Xiong cuidou pessoalmente da gravação do filme. Procurou impacientemente pela Liu Keke para conversar frente a frente, e com a mesma impaciência me mandou escolher o roteiro, decidir o diretor e verificar todos os projetos enviados pela Liu Keke.
Assim que me decidi a fazer isso, tomei a iniciativa de perguntar para o Xiong se eu também teria de escolher a protagonista do filme. “Somos os produtores, devemos ter algum poder de decisão sobre a escolha da protagonista, não?”
Não foi difícil encontrar a Xiaomian, o detetive particular me entregou rapidamente o novo endereço da família dela. Não ousava me encontrar com os pais dela, então fui ao comitê do bairro para perguntar pelo seu endereço de trabalho.
No fim, ela não se mudara para longe, sempre esteve trabalhando em uma gráfica perto da faculdade que frequentamos juntos, imprimindo, copiando, encadernando e tirando fotos.
Fiquei parado atrás da árvore de guarda-sol chinês observando-a de longe através da porta de vidro aberta, com um frio na barriga de expectativa depois de todos esses anos separados.
Ela estava trabalhando em frente à copiadora. Seus cabelos compridos presos na nuca, com um avental branco sobre um vestido preto, e os braços delgados desenhando um elegante arco. Virava sem parar as páginas do livro na copiadora, a luz do sol pousada em suas delicadas costas, piscando de acordo com o ritmo de seu movimento como em uma dança eterna.
A harmonia e a paz incomuns fizeram um pensamento passar pela minha mente. Acho que essa vida é a mais adequada para ela, talvez eu não devesse perturbá-la. Mas logo recuperei a lucidez. É claro que ela deveria ter uma vida centenas de vezes melhor que essa; muitas estrelas populares gastam horas se maquiando e não conseguem superá-la de rosto limpo. Moram em residências luxuosas que valem milhões, mas ela está aqui copiando materiais escolares para estudantes página a página. Isso não é justo.
Depois que a Xiaomian assumiu oficialmente como protagonista, o roteiro teve algumas mudanças não plenamente satisfatórias. A obra da roteirista era sobre a vida lendária de uma ilusionista, começando nos últimos anos da dinastia Qing, passando pela Revolução de 1911, República da China, Guerra de Resistência ao Japão, Guerra de Libertação, e chegando à fundação da República Popular; sobre como seus talentos naturais lhe trouxeram calamidades e como conseguiu sobreviver em meio a elas.
A princípio, além de ser protagonista, a Xiaomian também assumia todo tipo de responsabilidade. Depois, a Liu Keke insistiu em mudar o roteiro, queria que a ilusionista se transformasse em homem, com uma bela assistente ao seu lado, de modo a criar uma trama de amor.
“Os filmes têm que se conformar com a expectativa do público para conseguir vender ingressos. Em toda apresentação de ilusionismo, há um ilusionista e uma assistente seminua, e nos filmes é preciso ter romance, essa é a cereja do bolo. O que vai fazer se der ao público algo que ele não quer e não conseguir vender ingressos?”, disse Liu Keke, apontando ainda que esse filme carregava o nome da empresa dela. Mas a pressão sobre ela certamente não era maior que a nossa; se a nossa companhia seria ou não capaz de entrar no mercado de ações com certeza era algo maior, mandou que eu mesmo ponderasse a respeito.
Desse modo, o papel da Xiaomian passou de protagonista a um mero rostinho bonito na tela. É claro que não concordaria que ela ficasse seminua, mas na verdade ela nem mesmo poderia; tinha entre as escápulas uma enorme cicatriz de queimadura, não podia nem mesmo vestir roupas que deixassem as costas à mostra. Liu Keke reclamou de todos os jeitos possíveis, mas não conseguiu o que queria. Afinal, eu representava o financiador.
Xiaomian, no entanto, estava bastante satisfeita com o papel de assistente, achava que já era um papel muito além das suas capacidades. Afinal, ela nunca havia atuado em um filme antes.
“Li Rui, você acha que eu consigo?”, ela me perguntou timidamente. O tom de extrema confiança em mim não havia mudado nem um pouco. Estivemos separados por muito tempo, separados pelo meu descuido que causou seu ferimento. Isso fez com que eu corasse.
Encarei seus olhos confusos e acenei confiantemente com a cabeça: “Com certeza você consegue”.
O comportamento de todos estava dizendo a ela que com certeza conseguiria. O diretor, o produtor, os cinegrafistas, o sonoplasta, e até mesmo o protagonista estavam sendo extremamente lenientes e corteses com a atuação dela. Esse foi o mundo que eu construí para ela, esse era o resultado que eu queria.
Não esqueci que Xiaomian já esteve sob os holofotes no palco e recebeu os aplausos de inúmeros espectadores, mas parecia que ela própria se esquecera de tudo, seu corpo parecia estar sempre tremendo de medo em meio à multidão.
Uma vez ela me disse que não sabia se ainda possuía a habilidade de fazer os pássaros aparecerem; desde que saiu dos palcos após o acidente, nunca mais tentou. Disse a ela que aquilo não era importante, que ninguém dependia da habilidade de fazer pássaros aparecerem de verdade para viver, que todas as pessoas bem-sucedidas contavam com técnicas bastante simples.
Em algumas cenas, o protagonista apresentava o número de fazer pombas aparecerem e a Xiaomian ficava em pé ao seu lado vestindo um qipao azul-claro, segurando a caixa de palco, com o corpo rígido e o rosto um tanto pálido.
O assistente de palco estava sob a mesa, responsável por soltar as pombas; quando o protagonista levantava suas mãos, todas saíam voando rapidamente, fugindo assustadas por todos os lados. Em um piscar de olhos, tudo o que sobrava eram algumas penas flutuando no ar.
Sentado em frente ao monitor, o jovem diretor disse: “Quero alguns pássaros menores, com um pouco mais de cores, que pairem um pouco no ar antes de saírem voando, assim a sensação estética fica melhor, não ficam parecendo algo tão banal”.
O diretor estava conversando com os artistas sobre como conseguir esse resultado com adereços e efeitos especiais. Regravaram a cena uma vez atrás da outra. Na sétima vez, quando o ilusionista abriu os braços, surgiram repentinamente dezenas de pequenos pássaros ao seu redor.
Eram pássaros que nunca haviam aparecido antes na nossa cidade, beija-flores, com cabeças muito pequenas e corpos cintilando o exótico brilho do arco-íris. Parados no ar, olhando ao longe, pareciam gotas de chuva coloridas solidificadas em meio a sua queda. Não fosse por estar ouvindo o contínuo murmúrio de suas asas, pensaria que o tempo havia parado.
O assistente de palco sob a mesa segurava uma gaiola com pombas, ainda não soltara nenhuma. Toda a equipe também parecia congelada. O próprio “ilusionista”, com seus braços esticados, estava completamente perdido, enquanto a Xiaomian segurava tranquilamente sua caixa de palco. Até mesmo o diretor esqueceu de gritar “corta” e as câmeras continuaram filmando.
Apenas eu sabia o que havia acontecido. Gritei rapidamente: “Xiaomian, não crie problemas!”.
Seu rosto ficou levemente vermelho. Tirou suas mãos de baixo da caixa e, quando penderam ao lado do corpo, todos os pássaros de brilho multicolorido de repente pareciam não estar mais afetados pela gravidade, partindo de suas posições e voando em direção ao céu. Nesse momento, o arco de luz que deixaram atrás de si era como uma chuva de pedra expelida por uma cratera vulcânica. E então, toda a cena de aparência milagrosa desapareceu, oculta na paisagem comum do mundo.
Por dentro, estava secretamente maravilhado. A Xiaomian de então, além de ser capaz de fazer pássaros aparecerem, também conseguia controlar seu comportamento.
Após o incidente, o diretor e a equipe assistiram repetidamente a essa gravação e decidiram chamar a mim e a Xiaomian para discutir. O ponto principal é que esperavam que ela não voltasse a fazer qualquer pássaro aparecer; do contrário, o assistente de palco e o pessoal dos efeitos especiais perderiam os empregos. Essa era a demanda conjunta da equipe. A Xiaomian explicou para mim: “Sinto como se eu nunca tivesse feito nada, estou bastante envergonhada”.
Eu entendia aquela forma de pensar particular. Ela sentia que não havia sido capaz de trazer alguns belos pássaros a este mundo ou alguma outra coisa concreta. Disse: “Você tem que se lembrar, já faz tempo que não é uma ilusionista”.
Não sei como a Liu Keke ouviu sobre a Xiaomian fazer beija-flores aparecerem. Logo pela manhã, foi apressada de carro até a equipe, pegou seu celular e começou a filmar a Xiaomian, exigindo que fizesse pássaros aparecerem imediatamente. Parecia uma mulher enlouquecida, não conseguia fazer com que fosse embora.
Gritou comigo: “Li Rui, você está maluco? A mulher do nosso filme Ilusionista é uma ilusionista de verdade! Consegue fazer um monte de pássaros exóticos aparecerem estalando os dedos! Sem precisarmos de edição ou efeitos especiais para filmar, usando apenas as gravações, com uma tomada longa do começo ao fim; assim que a notícia se espalhar, o filme estará famoso antes mesmo de ter sido terminado! Temos uma mina de ouro nas mãos!”.
Com a promoção enlouquecida da Liu Keke, em menos de três dias era possível encontrar o vídeo da Xiaomian em todos os grandes sites de notícias e nas redes sociais. Ela passou a ser chamada carinhosamente de “garota milagrosa” na internet.
Diziam que poderia ser famosa apenas por sua aparência, assim como apenas por seu ilusionismo próximo à perfeição; sua posse dos dois fez toda a rede ferver por ela, e sua beleza inocente era elogiada por muitos que escreviam na internet. Já não eram nem mesmo escritores fantasmas pagos pela Liu Keke; de acordo com o que ela disse, ninguém neste mundo seria capaz de impedir que a “garota milagrosa” fizesse o filme mundialmente famoso.
Estávamos até mesmo pensando se devíamos ou não voltar para a primeira versão do roteiro, com a Xiaomian no papel principal, e excluir o protagonista que não era nem famoso, nem um ilusionista de verdade.
Disse animado para a Xiaomian: “Eu estava errado, é realmente possível ter sucesso fazendo pássaros aparecerem”.
Mas ela ficou bastante confusa com esse conceito: “Acho um pouco estranho falar em ‘sucesso’. Quando acordo pela manhã, apenas eu sei se vou ou não conseguir fazer pássaros aparecerem; mas as cores dos pássaros que vão surgir nem mesmo eu sei com certeza. Como outras pessoas podem saber se eu vou ter sucesso?”.
Na época, sua alergia voltou a atacar, não sei se por causa do ar seco do outono ou se porque o camarim dela no set de filmagens não estava adequado. Mandei o produtor comprar para ela algumas caixas de loratadina e prometi que iria mais tarde com ela a um hospital para dar uma olhada.
Enquanto estava falando, o Xiong me ligou desesperadamente no celular, fez várias chamadas seguidas. Queria que eu fosse para a companhia conversar pessoalmente com ele.
Quando cheguei, vi que a Liu Keke também estava sentada à sua frente, com aparência selvagem; o Xiong estava ralhando com ela, dizendo: “E daí que o Li Rui não sabe? Você sabe muito bem e aprontou isso de propósito, quer levar todo mundo para passar o Ano-Novo atrás das grades?”.
A atitude do Xiong estava bastante clara: “A Xiaomian vai deixar as gravações imediatamente, e uma atriz será procurada para fazer o papel dela. Toda essa excitação relacionada à Xiaomian e ao ‘Ilusionista’ precisar parar, e temos que dar um jeito de acalmar os ânimos”.
Perguntei: “Por quê?”, e o Xiong respondeu: “É instrução do nosso financiador, o Zhang Quande”.
Não aceitei, tinha de entender o motivo. O Xiong disse: “Nós dois estudamos finanças, assim que eu te mostrar as contas você vai entender. O Zhang Quande disse que tinha investido 240 milhões nesse filme, e que o pagamento da equipe custaria no máximo 50 milhões, mas as últimas contas mostraram que vai chegar a 240 milhões. No fim das contas, esse filme não poderá estrear nos cinemas, os 240 milhões só vão servir para cobrir as despesas. Para esse filme ter chance de estrear, o Zhang Quande precisaria investir mais 200, 300 milhões, e depois que esse dinheiro entrasse, retornaria legalmente como receita de bilheteria”.
Então, ele se virou para brigar novamente com a Liu Keke: “Sua imbecil, já não foi vantajoso o bastante para você ser contratada para a produção? Sua gananciosa insaciável! Já iam ganhar um bom dinheiro, mas inventou de contar com o filme para conseguir fama e reputação para vocês, queria tomar tudo só para você. Não vai demorar para você atrair a atenção dos policiais, como que a gente vai fazer para arrumar essa bagunça agora?”.
O Xiong ainda me lembrou: “Onde é que uma empresa pequena como a nossa tem potencial para ‘sermos abençoados’ assim? Todo mundo sabe muito bem que a razão para termos conseguido todos aqueles financiamentos era apenas que a pessoa que fez o primeiro esperava ter lucro ainda maior no seguinte. Quanto mais se contava vantagem, maior a vantagem contada. Por que acha que o Zhang Quande está se esforçando tanto, gastando tanto do próprio dinheiro com financiamento e querendo nos levar à bolsa de Hong Kong? O motivo é o mesmo desse filme. Quando a companhia chegar lá, ele vai comprar as ações que tem aqui na parte continental por meio da bolsa de lá, e o dinheiro vai direto para a conta dele em Hong Kong.
“O ponto principal é: agora que já estamos aqui, não temos como voltar atrás, temos que seguir em frente, querendo ou não.”
Eu não tinha o que responder, apenas senti como se o chão sumisse sob meus pés, não sabia como contaria para ela. Em um estado semelhante à exaustão, consegui voltar dirigindo para o set.
Tive dificuldade para contar à Xiaomian, e depois que disse tudo senti como se quisesse bater em mim mesmo. Ela, porém, sorria calmamente enquanto me esperava terminar de falar. E quando acabei, não demonstrou nenhuma surpresa ou infelicidade.
“Eu não sirvo para ser atriz, você sabe”, disse, consolando-me.
Procurei na minha cabeça, mas não encontrei nada adequado para dizer. No fim, tudo o que pensei em falar foi: “Que tal se eu te der uma vela?”.
A equipe de gravação já havia acertado para a Xiaomian o visto de turista e comprado a passagem de avião para Paris. Preparei uma soma de dinheiro para ela e insisti que se esforçasse para se divertir na Europa, que não ficasse na internet ou postando coisas nas redes sociais, para que os chineses on-line não a descobrissem.
Eu a levei de carro ao aeroporto. Só depois que passou pela inspeção, lembrei-me de ter dito que iria com ela ao hospital para ver a alergia, mas havia esquecido completamente.
Na vez seguinte que entrei na internet, mentiras sobre a Xiaomian enchiam a tela e me fizeram pular de surpresa. O escândalo sobre seus truques de ilusionismo estava sendo insanamente compartilhado.
A equipe do filme Ilusionista lançou uma nota oficial declarando que todos os vídeos de ilusionismo da Xiaomian haviam sido fornecidos por ela mesma, tendo sido identificada a existência de grande quantia de efeitos especiais, não sendo uma gravação real; e ainda que ela já havia sido oficialmente dispensada, não atuando mais no filme, e que o papel feminino principal seria feito por Wei Xue, entre outras coisas.
Da noite para o dia, as pessoas na internet começaram a xingar a Xiaomian, dizendo que era uma “trapaceira sem-vergonha”; algumas ainda focaram na idade dela, dizendo: “Que garota milagrosa, o quê! Ela já tem quase trinta anos, como que dá pra chamar de garota? Me dá nojo!”.
Peguei o cartão do quarto de hotel que a Xiaomian deixou e o joguei na frente da Liu Keke. Perguntei: “Ela já foi mandada embora, quando a empolgação se acalmasse estaria tudo certo. Por que você chegou ao ponto de destruir a reputação dela?”.
A Liu Keke abriu bem seus olhos confiantes e me respondeu com convicção: “Ela desapareceu de cena de repente. Se não fizéssemos algo, ficaria ainda mais famosa, a agitação seria maior, ganharia mais prestígio e mais seguidores. Os internautas não se esqueceriam dela, ela se tornaria uma lenda lembrada por todos. Por isso, o melhor jeito de acalmar a empolgação é destruir esse mito, fazer com que todos acreditem que ela é uma fraude”.
Olhando de canto de olho para mim, riu de repente: “Minha nossa, você está apaixonado?”.
Pouco depois, o filme foi terminado. Era igual a 70%, 80% dos outros, e não pôde ir para os cinemas; pelo contrário, passou a ser uma daquelas cópias guardadas em depósitos a que ninguém assiste uma segunda vez. Pode-se dizer que teve o que mereceu.
Como a principal pessoa lidando com a lavagem de dinheiro, a Liu Keke foi presa e cumpriu a profecia do Xiong, realmente passando o Ano-Novo atrás das grades. Vários meses depois, somando a outros crimes econômicos, foi condenada a dez anos de prisão.
A reação do Zhang Quande foi rápida. Assim que a Xiaomian se tornou uma celebridade, partiu de avião para Cingapura, país com o qual a China não tem acordo de extradição.
Como as evidências não eram suficientes, eu e o Xiong escapamos por pouco novamente. E aquilo sobre nossa companhia ir para a bolsa é claro que não deu em nada.
Nossa empresa começou a trabalhar honestamente, sobrevivendo com dificuldade por alguns anos. Nessa época, sob pressão dos meus pais, procurei alguém com quem me casar. Para que isso não fosse algo que me trouxesse tormento, escolhi casualmente uma mulher submissa e acertei o casamento.
Pouco depois, chegou meu aniversário. Minha esposa saiu para comprar um bolo e acendeu uma vela. Não sei por quê, mas fiquei enfurecido com isso: “Você tá maluca? Acendeu essa vela pra quê?”. “Me parece que você já comeu o bastante.” Ela pegou o bolo e jogou na lixeira.
Apesar disso, felizmente tivemos um filho logo. Minha esposa adorava me puxar para ir com ela para comer com sua família, exibir a felicidade e harmonia da sua família de três pessoas enquanto falavam mal uns dos outros pelas costas.
Nossa empresa era de pequeno porte. No fim das contas, não conseguiu competir com a ferocidade das novas companhias, assim como com as mudanças tecnológicas, e decretou falência.
Com minha experiência de dez anos como vice-presidente de uma companhia, não sabia qual empresa estaria disposta a me contratar. Depois de passar a maior parte do ano desempregado, deixei de lado meu orgulho e procurei na lista de colegas da minha faculdade, ligando de um por um para “dar um oi”.
No fim, foi a empresa do Fei Yunan que me aceitou, e ainda me deu um cargo de bastante prestígio como diretor-geral da seção de treinamento.
A empresa do Fei e a nossa de antes eram bem parecidas quando começaram; tivemos início semelhante e até o momento em que conseguimos financiamento foi quase o mesmo. A única diferença foi que a nossa sorte foi ruim, pois cruzamos com uma Liu Keke, enquanto a empresa do Fei não teve problemas para ir à bolsa interna e passou a ter dezenas de milhares de funcionários e propriedades no valor de bilhões. Tudo fluía de modo favorável, todos os desejos se tornavam realidade, os projetos que pegavam eram aprovados e obtinham lucro em tudo o que realizavam.
Esforcei-me ao máximo em todos os treinamentos, como “Buscando excelência e evitando derrotas”, “Cultura corporativa e orientação individual”, “Empoderamento para vendedores”, “Empoderamento para gerentes”, “Empoderamento para promoção”, “Empoderamento para mulheres independentes”, entre outros.
O curso sobre mulheres que ministrei pessoalmente teve grande procura, e pessoas de longe vinham me convidar para ministrá-lo. Por isso, virava noites trabalhando e escrevi séries volumosas, como “O que se deve saber para acelerar a melhoria da qualidade das mulheres no local de trabalho”, “O que se deve saber para acelerar a melhoria do charme das mulheres nas competições amorosas”, “Casar bem é melhor que ir bem em provas”, “Saber lidar com os outros é melhor que conseguir bons resultados”.
Zombando de mim, minha esposa disse: “Você sabe como ser mulher? Você não aprendeu nem como ser homem ou como tratar sua esposa como gente”.
Esses foram os anos mais diligentes da minha vida. A juventude não voltava mais, tinha de agarrar com firmeza essa última oportunidade de carreira, e “ter alunos por todos os cantos” era um fim muito bom. Adorava fazer apresentações de slides, estava sempre ocupado dando palestras nas filiais da empresa por todo o país, sentia que precisava estar fazendo coisas reais. Por isso, quando o Fei Yunan teve problemas com o Partido, não esperava me tornar o primeiro nome na lista de dispensa.
Na realidade, a vantagem de mercado que fazia “todos os desejos se tornarem realidade” do Fei Yunan não era por sorte, mas sim pela sua posição como “laranja”. Contudo, os treinamentos que eu presidi receberam opiniões positivas e não foi por contarem com tratamento especial do Fei Yunan. Todos podiam ver os resultados do meu trabalho.
Meu relatório para a chefe-geral de RH arrancou dela um sorriso frio: “Você e suas teorias-lixo! Nós te aguentamos por oito anos. Acha mesmo que alguém estava disposto a perder tempo ouvindo você? O que acontecia era só que não precisavam ir trabalhar nos dias de treinamento, iam todos para hotéis no interior respirar um pouco de ar fresco e comer no buffet”.
Disse com voz fraca: “Te imploro que deixe eu me aposentar, em mais alguns anos consigo minha aposentadoria”.
Um ano depois, com esforço, consegui um novo emprego como gerente de recepção de um banco. Ao ouvir, não soa nada mal, mas era apenas um trabalho temporário; o salário e o tipo de trabalho não eram muito diferentes daqueles de um guarda de trânsito nas ruas. Assim que eu me sentava, acabava cochilando, e o segurança me dava um chute para me acordar.
Vendemos o apartamento grande que tínhamos e nos mudamos para uma casa menor, mas não muito barata, em um bairro escolar, justamente perto da faculdade que havia frequentado. Tudo pelo nosso filho, que se tornou a única consideração nas nossas vidas. E aquilo que nosso filho mais queria perto de si era seu celular.
Como antes, minha esposa passava o dia exibindo sua felicidade nas redes sociais, exibindo seu marido bem-sucedido, sua vida romântica e sua família de três pessoas. Quando me via compelido a curtir as postagens, não conseguia evitar rir por dentro. A vida é mesmo uma farsa bizarra.
Querem saber se eu pensei em procurar a Xiaomian? Durante todos esses anos, sempre estive pensando nisso, nunca abandonei a ideia. Mas, anteriormente, fui eu quem a levou pessoalmente para seu voo internacional. Como poderia ir procurá-la?
Tendo passado pela maior parte da vida e das coisas, aos poucos entendi a fala do professor Lu elogiando a Xiaomian por não ser uma ilusionista. Neste mundo, todos são ilusionistas, menos ela. Isso é um talento muito raro, muito mais que ser capaz de fazer mil pássaros exóticos aparecerem com as próprias mãos, e por causa disso este mundo nunca sorriu para ela, chegando até mesmo a tratá-la como idiota.
Onde será que ela estava? Sentada na beira do Sena banhando-se com a luz do sol, com pássaros de todas as cores sobre seu vestido, ou pensando com saudades em sua terra natal em meio a uma noite agradável?
No quinto mês após nos mudarmos para o bairro escolar, minha esposa quebrou o braço; a culpa era da baixa qualidade da vizinhança, pois tropeçou em uma pilha de entulho no corredor. Minha sogra veio para ajudar na cozinha e me falou para ir à feira próxima para comprar uma pomba morta na hora, pois a sopa feita com ela ajudaria a regenerar ossos e músculos.
Um tanto contra minha vontade, misturei-me na feira com manchas de gotas de água barrenta, em meio ao caos e à confusão, até que cheguei à banca de produtos frescos. Uma senhora de meia-idade e aparência frágil estava de costas para mim, vestida com um avental emborrachado, agachada enquanto depenava uma pomba. Eu a chamei, e uma senhora obesa esperando ao lado por sua pomba me olhou irritada dizendo: “É por ordem de chegada”.
A vendedora de pombas se apoiou na parede para se levantar e virou o corpo. Segurando uma pomba já limpa, usou as costas da mão para secar o suor na testa, pingando sobre seu avental emborrachado uma água ensanguentada.
Neste momento, não ousei acreditar nos meus olhos. Vi a Xiaomian, essa mulher era a Xiaomian. Seus cabelos compridos estavam cortados, e seus bagunçados cabelos curtos já eram grisalhos. Estava ainda mais magra, com braços úmidos e manchados pelas penas escuras das pombas. Suas mãos estavam enroladas em panos, não sei se por estarem machucadas ou se por algum outro motivo. Seu rosto não sofreu grandes mudanças, especialmente seu olhar confuso como se tivesse acabado de despertar de seu sono. Isso fez com que eu a reconhecesse de imediato.
Havia imaginado milhares de situações em que a encontraria de novo, milhares de possibilidades para a vida atual dela. Nunca imaginei uma situação e um momento assim.
Essa era uma banca em que havia muito pouca luz, com tábuas para separá-la das outras. Geralmente, lugares que vendem alimentos nessas feiras fechadas deveriam ter iluminação, mas era difícil dizer se as lâmpadas fluorescentes estavam acesas. A principal fonte de luminosidade era a luz solar que entrava por buracos no teto.
Apoiada na parede estava uma pilha do que pareciam ser gaiolas retangulares de pombas, cobertas por um pano de cor incerta. Ao lado havia um caldeirão bem tampado sendo aquecido em um fogão elétrico do qual não parava de sair vapor, e perto dele havia um grande jarro d’água com mangueiras penduradas. O chão estava todo molhado, tão escuro que não dava para saber a cor com certeza, talvez de sangue.
Os clientes vinham em grande número. Fiquei olhando a Xiaomian tirando pombas sem parar de dentro das gaiolas cobertas pelo pano. Eram bem animadas, lutando e batendo suas asas. Com movimentos hábeis, jogava-as no caldeirão e o tampava; a ave emitia um som agudo e, um instante depois, já estava sem vida. Então, ela a pegava rapidamente, degolava e deixava sangrar, limpando depois na água fria. Em dois ou três movimentos tirava as penas e se agachava no chão para lavar com a mangueira, restando depois um corpo limpo que colocava na sacola e entregava para o cliente em troca do dinheiro. Nem o pior pesadelo do mundo superava isso.
Quando já havia assistido a essa cena repetindo-se por sete ou oito vezes, fiquei anestesiado, passou a ser algo comum e razoável.
Depois que os outros clientes foram embora, apontei para aquelas gaiolas e fiz como se fosse falar, mas não pude. Em silêncio, a Xiaomian levantou o pano para que eu visse; não havia nenhuma gaiola, apenas algumas caixas de papelão vazias. De modo bastante satírico, eram bem parecidas em tamanho com a caixa de palco que eu havia feito para ela no passado. Entendi. As pombas que ela matava todos os dias e vendia aos clientes vinham das suas mãos. De repente, senti vontade de vomitar.
Perguntei a ela: “Por que usa essas ‘caixas de palco’ de papelão?”. Foi uma pergunta muito idiota; afinal, quem comeria uma pomba saída das mãos de alguém? Perguntei de novo: “Por que precisa de todas essas caixas? Uma só não seria suficiente?”. Ela disse: “Não daria certo, às vezes vêm vários clientes de uma vez e tirar muitas pombas de uma só gaiola criaria suspeitas. E às vezes também aparecem clientes mais chatos. Mesmo que seja um só, quer pegar algumas pombas para escolher, então tenho que pegar de gaiolas diferentes”.
Lembro que antes a Xiaomian só queria fazer aparecer pombas brancas, de brancura impecável como a primeira neve do inverno, mas neste momento as pombas que ela vendia eram de um marrom-acinzentado. “Os clientes hoje em dia têm muito espírito de comunidade, suspeitam que pombas brancas possam ter sido roubadas de alguma exibição para serem vendidas, só comem pombas selvagens marrom-acinzentadas como essas.” Ela contava sobre seus clientes demonstrando uma atitude de disposição para servir.
Na verdade, havia uma coisa ainda mais importante que queria perguntar a ela, mas fui incapaz de fazê-lo. Como ela conseguia matar as pombas às quais ela mesma dera a vida? Elas só podiam viver alguns minutos neste mundo; assim que abriam os olhos, eram jogadas vivas no caldeirão de água fervente e logo se tornavam carne nas mesas das pessoas.
Lembrando aquele ano, quando estava no set de filmagem e vi a Xiaomian fazendo aparecer todos aqueles beija-flores, ela já era capaz de se comunicar em pensamento com eles, voavam e paravam de acordo com o seu desejo. Tinha motivos para acreditar que a dor dessas pombas ao morrerem também era sentida por ela.
Recordando algo ainda anterior, quando apresentava a “profusão de aves” nos teatros, seus pássaros não conseguiam encontrar um caminho que levasse ao céu, sendo capturados pelos assistentes de palco e trancados em gaiolas; e foi o destino de muitos desses “adereços de palco”, jogados fora após morrerem por ferimentos, o que deixava a Xiaomian extremamente triste.
No fim das contas, não perguntei. Só o que fiz foi apontar para os panos enrolados em suas mãos e perguntar: “O que houve?”. Ela sorriu: “É aquela doença antiga, a alergia”. “Ah! Da próxima vez, te trago um pouco de loratadina.” Disse isso, mas na verdade sabia que provavelmente não teria coragem de ir lá de novo.
“Compre uma pomba. Elas são bem frescas, meus clientes frequentes dizem que ficam especialmente gostosas no ensopado em molho de soja.” O jeito como ela me informou isso parecia aquele usado com clientes desconhecidos pelos açougueiros de verdade.
Saí confuso sem olhar o caminho, cambaleante; os clientes que chegaram depois me empurraram e quase me jogaram no chão. Não me importei e parti apressado daquela feira coberta, sombria e estranha. Depois de sair daquele enorme teto verde de plástico, respirei profundamente sob a luz do sol, mas o cheiro do ar do lado de fora não tinha nenhuma diferença daquele de dentro.
Andei correndo a passos largos pela rua, virei sem parar e atravessei uma pequena rua e uma travessa; parecia que estava fugindo de alguma coisa que me perseguia como uma sombra, que estava em todo lugar.
Levantei a cabeça de repente e percebi que estava em uma rua desconhecida. Na sua lateral, estava pendurado horizontalmente um cartaz vermelho como fogo, e estava escrito em letras brancas: “Parabenizamos a solene abertura do Fórum de Desenvolvimento da Indústria de Inovação do Ilusionismo da China”.
Andando mais um pouco, estava pendurado outro cartaz, agora na vertical, “Celebramos o bem-sucedido Seminário de Adereços de Palco de Ilusionismo da China”. Fui incapaz de não começar a gargalhar. Ri como se tivesse enlouquecido, ri a ponto de fazer as pessoas ao redor pararem para me olhar, ri até verter lágrimas. Só então percebi que estava chorando, chorando com uma tristeza inconsolável, como se fosse uma criança.
Tenho de admitir, a única pessoa que reagiu de modo drástico fui eu. De fato, a expressão da Xiaomian era muito natural e calma, parecia estar fazendo um trabalho extremamente comum. Talvez fosse isso mesmo, por que deveria achar que ela estar vendendo pombas era tão ultrajante? Ela era a pessoa mais capacitada a vender pombas. Mesmo que criadores de pombas fossem à feira vender diretamente, não ousariam dizer que as pombas pertenciam a eles, não é? Afinal, ninguém poderia dizer com certeza de onde vieram as primeiras pombas criadas pelos humanos.
Lembrando a expressão da Xiaomian, o único momento em que ficou desconfortável foi no começo, quando falei meu nome, pois não conseguiu me reconhecer. “Como você ficou tão gordo?” Depois de dar uma boa olhada em mim, pôs as mãos sobre o peito e começou a rir.
Todos os dias, após o fim do expediente no banco, ia dar uma volta ao redor da feira, mas não tinha coragem de entrar novamente. Quatro anos se passaram assim. Um dia, vi que o portão estava fechado e havia um aviso colado informando que a partir de então a feira estava oficialmente encerrada, que aquele seria o lugar do novo Mercado Jianhua, que se desculpavam pela inconveniência temporária causada aos moradores da região etc.
Fiquei em choque. No portão lateral da feira, encontrei alguns vendedores que ainda estavam se mudando dali e perguntei sobre a Xiaomian. “Está falando da sra. Lin, que vende pombas?”, alguém me perguntou.
Eu a encontrei no lugar em que pagavam pelo aluguel das bancas e fomos nos sentar em um jardim na parte central de uma rotatória para conversar sobre o passado. Perguntei a ela: “Depois que o mercado for inaugurado, vai continuar a vender pombas ali?”. Respondeu: “Impossível, o mercado não aluga bancas”.
“E não pode ser fornecedora do mercado?” Ela disse: “Também é impossível, o mercado vai comprar pombas em lote direto dos criadores, do tipo morto, limpo e embalado. Uma só pessoa não consegue suprir uma quantidade tão grande todo dia, não dá tempo de depenar”.
“Então você não poderia...” Hesitei por um instante. “Não poderia fazer aparecerem pombas já embaladas?” A Xiaomian não pôde evitar de rir; eu também ri, isso era absurdo.
O que eu queria ter perguntado de verdade era: “Então o que você vai fazer para viver agora?”, mas não perguntei. Quando já havíamos envelhecido, foi a primeira vez na vida que decidi não discutir com ela planos práticos para a vida. Passei a vida toda conversando com ela sobre aqueles “aparatos para a vida”, sempre achei que fosse o único tópico útil para se conversar. Útil o caramba. Foi a primeira vez que falei com ela sobre as aves. Perguntei: “Você consegue sentir a alegria ou a dor dos pássaros?”.
“Sei no que está pensando”, ela me disse. “Toda madrugada, faço aparecerem pássaros de tamanho igual e deixo que voem para o céu. Poderia dizer que é uma forma de compensação, mas tem mesmo alguma diferença? Vão morrer do mesmo jeito. Suportar uma vida cheia de sofrimento para então morrer ou morrer imediatamente, qual é a melhor sorte? Os que se tornaram aparato de palco são mais felizes? Mesmo aqueles que encontraram o céu ainda estarão sofrendo neste parque de diversões que é a cidade. Vão morrer de fome em liberdade ou serão presos, trancafiados, usados e mortos.”
“Não tenho capacidade para fazer surgir um pássaro que possa definitivamente ser feliz e livre.” A Xiaomian soltou um suspiro. Então era nesse tipo de situação que ela se encontrava, o único problema em que pensava com seriedade e que a atormentava.
Perguntei: “Neste mundo não tem nenhuma terra de felicidade que pertença a eles? Quero dizer, para além da morte”.
“Tem.” Levantou a cabeça olhando para o céu, mas já havia escurecido e não viu nenhuma luz.
Ela me deixou um endereço, disse que não era muito longe daquela universidade que frequentamos, atrás da rua das lanchonetes, uma rua chamada Pluma Estrelada.
Depois que ela partiu, veio-me um pensamento. Imediatamente procurei pelo mapa no celular. O resultado da busca pelo endereço era um espaço em branco, e sua silhueta já havia desaparecido em meio à cordilheira de arranha-céus.
Então procurei perto da universidade, procurei por pelo menos duas horas todos os dias à noite, olhei cada uma das placas das ruas como um demônio. Acreditava que ela não mentiria para mim, ela nunca mentiu para ninguém.
Minha esposa estava bastante descontente com meu comportamento suspeito de todas as noites e sofria por não poder me impedir. Nas redes sociais, elogiava meu interesse em me exercitar com caminhadas, tendo de andar pelo menos vinte mil passos todos os dias, e saía antes de dormir se o total do dia não tivesse sido alcançado; dizia que eu era digno de ser visto como um exemplo de marido disciplinado, não queria brigar. E eu a deixava dizer as besteiras que queria.
Uma certa noite, a iluminação súbita veio a mim. Pensei: “Por que estou procurando pelas ruas no meio dessa noite escura de cabeça baixa? Deveria é estar com a cabeça levantada. Quando vir onde há bandos de pássaros levantando voo sem parar, é o lugar em que a Xiaomian deve estar. Ela disse que, às vezes, fazia alguns pássaros pequenos aparecerem durante a madrugada e deixava que voassem para o céu”.
O céu da noite era azul-escuro, parecia estreito e limitado sob o ataque das luzes da cidade. A luz da lua cheia estava fraca, não dava para ver estrelas. Mas pude perceber em um lugar não muito distante um fio de luz cruzando o céu ocasionalmente, parecido com estrelas cadentes, e seu rastro estava delineado demais. Percebi com alegria que era o rastro deixado pelos pássaros cruzando o céu à noite, suas asas recém-nascidas brilhavam em meio à luz da lua.
Segui naquela direção e, como esperava, vi ao longe a Xiaomian. Ela estava em pé na parte vazia de uma viela, exatamente no local em que incidia a sombra dos prédios; sobravam algumas casas baixas que ainda não tinham sido demolidas, não havia iluminação, e algumas velas estavam acesas sob árvores de ginkgo.
A luz dessas velas tornava as formas da Xiaomian bastante compridas; quando ergueu seus braços, pareciam ainda mais magros. Vi pequenos pássaros de cores e formas diferentes saindo sem parar das pontas dos seus dedos, um atrás do outro, cada vez mais. Aos poucos, reuniram-se voando em círculos no céu sobre nossas cabeças, como um redemoinho vibrante.
Era como se fosse ontem, jovem sobre o palco, usando um vestido branco, com os pássaros voando como sua coroa. Não quis interrompê-la. Tudo parecia um sonho, do qual não queria acordar.
Os pássaros se dispersaram em sucessão, e a Xiaomian abaixou os braços. Pensei que deveria estar cansada e, quando ia me aproximar para cumprimentá-la, vi que estava retirando os panos que cobriam suas mãos. Caíram no chão em um instante. Imaginei que minha visão estivesse turva, pois vi as costas das suas mãos emitindo uma luz azul, como se fossem escamas. Não, eram minúsculas penas que brilhavam sob a luz das velas. Estavam crescendo e rapidamente cobriram todo o seu braço. No meio do seu curto cabelo grisalho nasceram em profusão penas coloridas. Todo esse processo era extremamente bonito de se ver, era como se sua vida estivesse partindo da velhice para uma nova fase incompreensível.
A última parte foram seus ombros. Entre suas escápulas, vi uma forma bem familiar, a cicatriz deixada pela queimadura. Naquele momento, sob suas roupas, a cicatriz estava emanando um brilho fulgurante, e de dentro da sua abertura emergiu um úmido par de asas.
Aquele par de asas se abriu hesitantemente em suas costas, alto como um sobrado de dois andares. Bateram uma vez, depois outra vez, os movimentos cada vez mais firmes. Estendi a mão para bloquear o forte vento que veio diretamente no meu rosto e, nesse momento, vi a Xiaomian levantar voo. Em um piscar de olhos, aquele magnífico pássaro enorme voou diretamente para o meio do céu noturno, desaparecendo como uma estrela cadente, sem deixar vestígios. Todas as velas se apagaram no mesmo instante, e o ar ao redor ficou preenchido com aquele cheiro familiar da minha infância, “um cheiro misturado de âmbar, tinta de fuligem de pinheiro e chocolate guardados no fundo da gaveta”, como ela dizia. Em meio ao vento da noite, inspirei profundamente e senti que me tornava jovem de novo.
Seguindo meu caminho de volta para casa, encontrei a placa com o nome da rua na esquina. Vi que nela estava escrito muito claramente “Rua Pluma Estrelada”. Então essa rua realmente existia.
Alguns dias depois, a empolgação inicial havia passado e comecei a duvidar do que vira naquela noite.
Procurei na internet por notícias dos últimos dias sobre a rua Pluma Estrelada sem me importar com mais nada. Como antes, a “Rua Pluma Estrelada” não aparecia em nenhum buscador.
Então comecei a procurar por notícias sobre os arredores da universidade e defini uma semana como intervalo de tempo. Encontrei muitas coisas. A caldeira do campus explodira; a construção do novo prédio de física, doação de ex-alunos no exterior, tinha começado; o inspetor da rua das lanchonetes fez um ambulante se ajoelhar; o filho famoso de um magnata da Forbes levou uma subcelebridade para comer comida japonesa na rua das lanchonetes, e foi dito que pediram vinte vezes a língua de boi do local, o que deixou o local muito famoso.
Havia também um rapaz da faculdade que acendeu 99 velas para conquistar uma colega, a qual ficou muito emocionada, mas, considerando que o rapaz era muito pobre, teve de rejeitá-lo. A foto dessa notícia fez meu coração bater mais forte, as velas sob a árvore de ginkgo me pareciam bem familiares. Se as velas naquela noite foram acesas pelo rapaz, será que tudo o que eu vi foi mesmo uma alucinação?
Pensei em consultar um psicólogo, mas, quando me veio à cabeça que teria de contar do começo ao fim toda a história da Xiaomian para um desconhecido, fiquei extremamente incomodado. Um homem da minha idade, desleixado, com uma imaginação tão perturbada, seria algo bastante vergonhoso, não? Talvez o psicólogo risse na minha cara. Mas sempre que pensava que tive tantas alucinações tão vívidas, eu me sentia bastante desconfortável por dentro.
Por fim, procurei uma consulta psicológica na internet que permitia anonimato, ninguém precisaria ver ninguém, seria tudo on-line. O psicólogo me analisou. A beleza e a inocência da Xiaomian eram por causa da minha insatisfação com a vida familiar, e seus poderes estranhos, por causa da minha insatisfação profissional. Ao longo de suas vidas, as pessoas sempre precisam acrescentar partes que têm sentido, e a Xiaomian era justamente essa parte.
Perguntei: “Então preciso me livrar dessas partes imaginárias?”.
Senti que o outro lado hesitou por um instante, e então o pop-up com as respostas voltou a aparecer. O psicólogo respondeu: “Se ainda puder encontrar outro sentido ao longo da sua vida, com certeza poderá se livrar dessa parte”.
Escrevi um “muito obrigado pela consulta” e depois desliguei o computador.
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Literalmente “Portão do Depósito de Pedra”, é um estilo arquitetônico de Shanghai que combina características ocidentais e chinesas surgido no final do século XIX. [N. do T.]
Um tipo de pedra colorida de origem sedimentária da região de Nanjing. [N. do T.]
As empresas às vezes optam por firmar acordos com parceiros que não são divulgados imediatamente ou que são intencionalmente mantidos em segredo de terceiros. Tais acordos são conhecidos como “acordos de gaveta” na China. [N. do T.]
Do inglês “initial public offering”, oferta pública inicial. [N. do T.]
Traje tradicional feminino do período final da dinastia Qing. [N. do T.]